quarta-feira, 27 de março de 2013

A cismar

A aldeia onde cresci já não é a minha aldeia; é a aldeia de quem agora cresce lá mas já não a sinto como minha.
Falta tanta coisa e tanta gente ... quando passo há portas fechadas; janelas desconjuntadas que reflectem o vazio e a escuridão que agora vive naquelas casas; há ervas daninhas que invadem os páteos onde antes havia roupa nos estendais e galinhas a esgravatar o chão; há terrenos abandonados onde antes se viam costas vergadas e sachos no ar ; há vidros , betão e geometrias rectas onde antes havia pedra, telha e cal; há gente que eu já não conheço e há uma grande nostalgia de passar e já não ver a minha avó paterna a presidir à "Assembleia " ... a Assembleia era onde os velhotes ( e já eram velhos há 30 anos atrás ) se juntavam a meio da tarde, a Assembleia era umas tábuas corridas em cima de uns tijolos contra a parede caiada da casa da minha avó onde se sentavam e  falavam de tudo e de nada e onde se viam passar os carros na estrada ali mesmo rente aos seus pés e que milagrosamente nunca houve nenhum acidente; hoje, já só a minha avó, com os seus 90 anos, é viva, todos os seus amigos e vizinhos morreram e sinto que ela também já partiu há muito.
 Sinto tantas saudades do rio da Luísinha; o rio da Luísinha era um pequeno lago, de águas leitosas por causa do sabão azul e branco, que interrompia num círculo o curso de um regato que ali passava onde as mulheres lavavam a roupa nas suas joelheiras  e as esfregavam vigorosamente nas lajes ásperas do rio, eu gostava de ir para lá com a minha avó e ver aquela arte de passar o sabão na roupa, fazê-la ondular na água, torcê-la com um movimento mágico de mãos e pulsos e braços e depois estendê-la na erva a corar ... que saudades ... depois, com a melhor das intenções, penso eu, a junta de freguesia, canalizou o regato e construiu uns lavadouros e um parque infantil e quebrou irremediavelmente aquela bolha social de sabão azul e branco onde nunca mais ninguém foi lavar, torcer e estender roupa até aos dias de hoje ...

Ontem quando cheguei a casa dos meus pais, a minha filha e o meu sobrinho estavam a brincar com este pedaço de madeira, que eu já não via há anos; foi o meu pai que pintou, quando era solteiro e ainda vivia em casa dos meus avós, a pintura não representa a minha aldeia mas representa tudo o que já foi e que já não é  ...

 
( e eu tive a feliz ideia de acrescentar uns pormenores e avivar as cores quando era criança e a apanhei a jeito -_- )
 
 
Não resisto a deixar aqui mais uma vez esta passagem do livro Cal que acho que consegue ilustrar tão bem aquilo que sinto ...
 

"às vezes ,a cismar na pena de ter visto tanta coisa que passou e que nunca mais se voltará a repetir, a cismar na pena das pessoas que conheci, a recordar-me de como foram alegres, de como sofreram e de como desapareceram das suas vidas, das suas casas e, depois, da memória de todos aqueles que foram nascendo e vingando e que, hoje, passam pelas ruas da vila, sem conseguirem sequer imaginar que, antes, havia pessoas que tinham as mesmas arrelias, as mesmas ilusões, e que passavam por essas mesmas ruas . "

José Luís Peixoto - Cal

1 comentário:

  1. Muitas vezes as coisas mudam à nossa volta mas no nosso coração permanecem iguais, como se o tempo não passasse.

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